O dia P
Nove da manhã, 31 de outubro de 2012. Aniversário do meu pai, que torceu desde que soube da minha gravidez para que o neto nascesse em seu dia. A DPP (data provável do parto) era 29/10, e para todos eu falava em "início de novembro". Sabia intimamente que Luís Norio nasceria em novembro.
Mas ainda estávamos em outubro. Às nove da manhã, levantei para ir ao banheiro – seguindo os conselhos das mães experientes, aproveitei o máximo que pude para dormir, ou pelo menos descansar até mais tarde, mesmo com as frequentes idas ao banheiro durante as madrugadas. Esses despertares por conta da bexiga cheia, dizia sempre, era um ensaio para as noites insones da maternagem... mas a simulação é apenas uma mímese distante da realidade....
Digressões à parte, fui ao banheiro e vi um muco de consistência semelhante ao da ovulação, só que avermelhado. Era o tampão que caía. Não dei muita atenção por saber que podiam passar-se dias até o trabalho de parto engrenar. Porém, não queria que fossem muitos dias, pois temia a quadragésima-primeira semana de gravidez e a possibilidade de indução do parto. Avisei o marido, que evidentemente ficou feliz, e perguntou:
– Será puxa-saco do avô, pra nascer no dia dele?
–Sei não, vamos ver.
Mandei um torpedo para a doula e professora de Yoga, Kátia Barga, e para a obstetra, Andrea Campos, já perguntando se podia ir pra piscina com tampão caído (e ela disse que sim, eba!). Chico, o marido, perguntou se ficava em casa ou ia trabalhar.
–Vai trabalhar, claro! E faz hora extra porque depois vamos precisar das suas folgas.Qualquer coisa eu te aviso.
Desde as quatro da manhã, as contrações estavam tranquilas e espaçadas em intervalos variando entre vinte e dez minutos, talqualmente as Braxton-Hicks (contrações de ensaio) das últimas duas semanas. Durante a Mostra Internacional de Cinema, encarei duas sessões com as Braxton-Hicks a cada dez minutos, durante uma hora, depois fim. Nada que respirações profundas e, quando necessário, algumas rotações de quadril não resolvessem. Continuei tranquila naquela manhã e segui a mesma estratégia, pensando que pudessem ser Braxton-Hicks ou, se não fossem, eram pródromos muito incipientes ainda. E aquela dorzinha semelhante a cólica menstrual, só que vindo em ondas, de cima pra baixo, de frente pra trás, era perfeitamente manejável.
Um sinal típico de fase latente, o intestino solto, apareceu no meio da manhã. Não dei muita atenção. Podia ser o mix de fibras (gérmen de trigo, farelo de trigo e de aveia, farinha de linhaça) que comia no café da manhã diariamente, com iogurte e fruta, pra evitar constipação.
Na palestra sobre as fases do parto da Casa Moara (onde fiz o pré-natal e frequentei grupos de gestantes), a orientação pra fase latente era manter vida normal. Não fiquei ansiosa, não me ative a pensar se estava ou não em trabalho de parto. Podiam ser contrações de Braxton-Hicks... ou não... Seguindo a dica de um relato de parto que ouvi na Casa Moara, agendei manicure e pedicure, às 11h. Chico escolheu a cor para receber Luís Norio, um vibrante vermelho alaranjado (Garota Verão, Colorama). Não falei nada sobre as contrações pra não assustar as manicures, só que elas sabiam que estava de 40 semanas e o parto podia ser a qualquer momento. Então a pergunta foi:
–Mas pode passar esmalte vermelho no pé e na mão? Não vão tirar na maternidade?
–Não, isso é pra quem vai pra centro cirúrgico, e eu estou me preparando pro parto natural, podem mandar ver no esmalte.
Nessa hora Kátia, a doula, mandou torpedos perguntando como estava, falei que tinha ido ao salão e as contrações se mantinham suaves a cada 15 minutos. Fazendo unha pra estar bonita pra chegada do Norio?, ela escreveu fazendo graça.
Fazia um calor intenso, uns 35 graus. Almocei em casa (seguindo aquele instinto de parideira, fiz feijão pra uma semana, congelei em potinhos, e preparei uma torta de legumes). Tirei uma breve sesta e as contrações ainda naquela suavidade, a cada 10 minutos. Pensei em ir pra aula de Yoga, mas Kátia me demoveu da ideia por causa do extremo calor. Então pratiquei um pouco em casa, enfocando assoalho pélvico, fiz também a postura do lenhador, acocorando pra chamar Luís Norio ao mundo.
Quando o sol amenizou, às 16h30, desci pra piscininha do prédio. Kátia ligou no intervalo das aulas. Falei que as contrações continuavam na mesma, então estava me refrescando. Duas vizinhas do prédio também curtiam o fim da tarde com água fresca. Perguntaram de quantos meses eu estava, disse nove.
–Não parece, puxa, você engordou pouco.
–Cinco quilos.
–E é pra quando o bebê?
–Pra qualquer momento. Estou me preparando pro parto natural, aliás gostaria muito de ter parto na água, então é bom vir pra piscina porque serve de treino.
Sei lá por que, minutos depois fiquei com a piscininha só pra mim... Será que elas tiveram medo de eu parir ali mesmo?
Fato é que os movimentos na água e o relaxamento ajudou. Em pouco mais de uma hora, o intervalo de contrações baixou de 10 para 7 minutos. Tomei um banho às 18h, ainda naquela ilusão de que o banho morno amenizaria as contrações. Até ajudou a relaxar, mas não a diminuir o intervalo. Sentei na bola emprestada por Kátia e girava o quadril para aliviar as contrações. Assim que acabou a aula, ela ligou pra saber como eu estava. Disse que a piscina foi ótima pra reduzir o intervalo, mas ainda estava tudo sob controle.
–E o Chico?
–Ah, ele tá vindo, deve chegar pelas 20h.
Por volta de 19h Kátia chegou em casa (moramos muito perto, algumas centenas de metros de distância). Foi maravilhoso porque parei de contar intervalo de contrações. Em nenhum momento, contei sua duração. Esse trabalho ficou com nossa querida fada-doula e pude relaxar, focar apenas nas respirações profundas, nas vocalizações e gemidos, que se tornariam cada vez mais intensos, agudos e escandalosos.
Parecia que ainda iam se passar muitas horas, e estava pronta para isso. Sabia que primigestas podem levar 24 horas ou mais em trabalho de parto. Do jeito que estava, tudo beleza! Chico chegou, abriu um vinho pra comemorar a queda do tampão. Ele perguntou quanto tempo podia levar, ah, isso vai até amanhã. Degustou calmamente uma taça com Kátia, e eu um suco de uva. Comemos a torta de legumes enquanto Chico tomava banho. Quando ele voltou pra mesa, falei: Nossa, tou aqui mas não tou. Era uma sensação de que meu corpo estava ali na sala, eu percebia os móveis, o piano, os objetos e as pessoas ao redor (Kátia e Chico), mas minha mente, minha alma, estavam em outro lugar, observando meu corpo ali.
Nesse momento, Chico estava comendo o primeiro pedaço de torta e Kátia falou:
–Vamos juntar as coisas pra ir pra maternidade.
–Não era pra amanhã? perguntou Chico.
–Não, é melhor irmos sem pressa, mas logo.
–Dá pra comer a torta, é bom você se alimentar — falei.
Pegamos a malinha do Luís Norio (cujas roupas não foram tocadas na maternidade, pois ele ficou só nos cueiros, só usou roupa pra ir pra casa), as nossas coisas, sacos plásticos e uma toalha velha reservadas para o caso de a bolsa estourar no carro (não rompeu). Descemos pro carro da Kátia, que estava na garagem do nosso prédio. Quando interfonei na portaria, pouco antes das 19h, pra autorizar a entrada da Kátia, dizendo:
– É nossa amiga, veio ficar comigo e vai nos levar pra maternidade.
O porteiro ficou assustado:
–Como assim? Você está sozinha?
–Tudo bem, ela está vindo e o Chico chega logo.
Sabia que essa etapa, do trajeto à maternidade, poderia empacar o trabalho de parto. Então preferi não focar muito no exterior, e ficar introspectiva ao máximo possível. Seguindo a sugestão da Kátia, ajoelhei no banco olhando pro vidro traseiro do carro, mas só por cerca de 1 km. Depois preferi sentar meio de lado. Chovia, uma chuva fresca e fértil, que extraía o cheiro da terra úmida. Como em uma certa segunda-feira de prática de Yoga, que nos brindou na hora do Yoganidra (relaxamento) com uma chuva boa e prazenteira... Estava ali e não estava, alternava momentos de consciência total com outros em que parecia flutuar sobre mim mesma. Tenho a impressão de que Kátia ficou um pouco nervosa com o trânsito (não percebi congestionamento, já passava das 21h, acho que foi alguém nas proximidades do São Luiz atrapalhando o fluxo). No fim, não senti tanto o percurso geográfico. Meu percurso era outro, o da chamada "partolândia".
Chegamos no São Luiz Itaim por volta das 22h. A enfermeira obstetriz Márcia Koifmann nos aguardava e, quando viu minha expressão serena, olhou pra Kátia e nada disse, mas fez uma expressão de quem diz: Tá louca? Pra que trazer a mulher na fase latente pra maternidade? Fui pro cardiotoco (chato, mas não o fim do mundo). Estava já com 8 pra 9 cm de dilatação; Márcia não acreditou, refez o toque pra confirmar. Pela sua carinha de 'alguma coisa está incomodando', achei que você estava com uns 3 cm....
A prática de Yoga me ajudou muito a atravessar a fase ativa (dilatação de 5 a 8 cm) como se fossem pródromos, a etapa inicial do trabalho de parto. As respirações profundas aliviavam as dores, que realmente, não me pareciam tão lancinantes assim. Enfim, era o final da fase ativa, já entrando na transição para o período final, o expulsivo.
Chegamos à suíte de parto. A delivery da banheira grande não estava disponível. Tentei me ajeitar na banheira retangular, que foi útil pra aliviar as contrações, mas ali não achei posição pra parir. Chico entrou na água comigo (estava de sunga) e, apesar de ele ser um moço compacto, o espaço ficou mais apertado ainda. Em uma das contrações me mexi de um jeito desengonçado e quase quebrei a tíbia do marido! Enfim, aproveitamos o que a banheira pode proporcionar. Foi lá que Katia fez uma acupressão nos ombros maravilhosa, a Andrea tirou o rebordo do colo (Katia falou, prepare-se porque vai doer, mas vai ser bom porque depois alivia) e entrei no expulsivo.
Nessa fase fizemos quase todo o Kama Sutra do parto: de quatro, apoiada na bola sob chuveiro (Chico fez direitinho a massagem no sacro); de cócoras sustentada, segurando um lençol amarrado na maçaneta da porta do banheiro (nessa posição Luís Norio alcançou o nível zero da bacia)... Senti fome, queria algo salgado. Muito carinhoso, Chico tentou colocar uma bolacha em minha boca. Justo na hora de uma contração. Cuspi tudo na cara dele: isso é hora de dar a bolacha, no meio da contração? Como se ele tivesse maneira de saber...
Seguimos pra cama sobre a banqueta de parto, tentamos de lado, em posição ginecológica... tinha que fazer a tal força comprida, que não sabia onde era e de onde vinha. Minhas contrações eram muito curtas (mesmo no expulsivo). Por um lado, sua brevidade fez com que não parecessem tão horríveis, e por outro, aqueles efêmeros segundos demandavam foco e ativação total de
corpo-mente-emoções.
Lembro que Andrea falou algo assim: você não está fazendo a força, assim ele não vai nascer. Katia dera uma dica, ainda na banheira: fazer o jalandhara bhanda (chave de queixo: inspirar e, retendo o ar, levar o queixo ao peito). Mas chegou uma hora em que estava fazendo todos os bhandas, ativando períneo, abdome, garganta, peito, tudo. Urrava, buscando o lugar dessa força estranha, botando pra fora gritos primais. Quem vê o vídeo do parto pensa que eram dores excruciantes mas garanto que não, foi o jeito que achei de me libertar pra abrir passagem ao bebê. Os urros expressavam a minha entrega, aquilo que chamo "decorticar", deixar longe a racionalidade cartesiana, masculina (muito útil em outros momentos), e permitir que aflorem nossas capacidades de fêmea, de agir pelo fluxo das emoções, mais ligadas ao sistema límbico do cérebro. (Uau! Que papo mais neurociência!)
Depois de cerca de duas horas de expulsivo (é uma estimativa, parturientes não têm noção de espaço-tempo), Andrea falou em usar ocitocina sintética pra não prolongar o trabalho de parto, por causa de pequenos miomas no meu útero. Aquilo me soou quase como uma ameaça, mesmo que não o fosse. Uma auxiliar de enfermagem segurava um garrote e vinha em minha direção. Acocorada sobre a cama, tirei uma força de não sei onde e finalmente veio o círculo de fogo. Ardeu, gritei, senti a cabecinha de Luís Norio e seu grito, antes mesmo do corpinho sair. Na próxima contração, quase pulei pra fora da cama, e veio o corpinho do pequeno. Madrugada fértil e chuvosa, pari ao som do Concerto Italiano de Bach, às 2h17 do dia de Todos os Santos.
Seja bem-vindo ao mundo, filho. Você chegou de maneira respeitosa, sem manipulações desnecessárias, banhado apenas de amor. Que sua vida seja linda, harmoniosa, feliz e intensa como sua gestação e parto.